Sunday, October 26, 2014

A Verdade

Olá meus caros tupiniquins. Há quanto tempo não escrevo por aqui, não é mesmo? Bom, um pouco afastado pelas tarefas cotidianas, mas sempre pensando com carinho nesse projeto dos manacás, lembrando sempre com amor dos urutaus e do canto à lua. Enfim, cá estamos novamente para dar uma breve introdução em um pensamento que já me foi motivo de boas conversas com muitas pessoas. Muitas vezes tive a oportunidade de usar dos mitos de outras religiões de uma maneira doce e alegórica, simplesmente para colocar de maneira descomplicada uma visão um tanto complexa.
Não sou portador de grandes conhecimentos sobre as religiões do mundo e tão pouco sou versado ou gabaritado para isso, mas com o muito pouco que eu sei vou tentar passar para vocês, meus amados leitores, a ideia de união que há muito tempo tem pululado minha mente e meus sentimentos. Acredito, com profundas incertezas e um altíssimo grau de risco, que o mito que vou contar já foi descrito mais lindamente por outros escritores no oriente e, talvez, mais precisamente por poetas muçulmanos. Ah esses poetas muçulmanos, o que seria da visão do amor se não fossem eles? São de uma profundidade, são de uma acurácia mortal. Infelizmente, caro leitor, eu não sei mais qual o título desse conto, eu não lembro quem foi o autor (se é que se conhece a origem de algo tão antigo), mas a única coisa que eu talvez possa dar como pista é que, até onde minha parca memória me permite lembrar, esse conto é de origem Islã e vou chamá-lo de “A Verdade”. Pois que cemecemos.
Rezam os dizeres mais antigos que antes da criação, muito antes de se criar o cosmos, muito antes de se criar a realidade, muitíssimo antes de tudo passar a existir como é, muito antes da famosa eclosão do ovo universal, em um tempo imemoriável o Todo estava reunido em um único e singular ponto, concentrado. A ciência hoje em dia teoriza que esse “Todo” seria o condensado de toda a energia do universo em um único ponto menor que a cabeça de um alfinete, mas vamos deixar a ciência de lado, pois aqui estamos a falar de um conto fantástico. Então, naquele tempo longínquo o Todo era uno e por razões que nem os mais sábios eremitas desconfiam, esse Todo partiu-se em uma quantidade imensa de pedacinhos espalhando-se por um espaço infinito limitado tão somente pela própria projeção dos diminutos pedacinhos que antes constituíam um único corpo.
Sabem os eremitas que o Todo, antes de quebrar-se constituía a única coisa, a única verdade, mas que ao se fragmentar criou de si uma quantidade numericamente superior ao que nós usualmente contamos de pequenas partes da única verdade. Cada fragmento era portanto uma amostra da mesma verdade, mas cada fragmento, tal qual um espelho, só refletia uma parte da verdade. Um espelho completo reflete uma imagem completa, um amontoado de cacos de espelho refletem, cada caco, toda a porção da imagem que lhe é capaz de capturar a depender de como se posiciona o caco de espelho em relação à imagem. Portanto, a criação foi pulverizada em absoluto por esses pequeninos fragmentos que carregam consigo um reflexo muito pequeno da imagem do que era o Todo. Assim chegamos ao nosso sistema solar, passados bilhões e bilhões de anos após a eclosão do Todo, em uma parte do universo em um cantinho periférico de uma galáxia surgiu um planeta, entre muitos outros com condições necessárias para o florescer de uma atividade pensante, seja ela da mais rudimentar possível até a mais complexa.
A vida então floresceu no terceiro ponto de um azulado pálido do sistema solar. Os seres que alí brotaram usaram da composição material do próprio planeta para existir, sendo portanto partes inerentes do organismo cósmico, sendo todos filhos das estrelas. Cristais, plantas e animais, todos organizando-se e utilizando-se da matéria prima cósmica, todos bebendo dos caquinhos do Todo, cada ser um amalgamado dos pequenos espelhos microscópicos que eternamente refletem a verdade original. Nesse florescer, animais mais complexos surgiram, sendo capazes de olharem para si mesmos, pensarem por si mesmos e criarem por si mesmos. Esses seres somos nós, os humanos. Todos, individualidades pensantes que, como qualquer outro animal, planta ou minério, é portador dos mesmos fragmentos cósmicos da verdade. Muitos humanos foram que perceberam esses fragmentos da verdade dentro das próprias experiências da vida e fascinaram-se. Muitos foram aqueles que se fecharam hipnotizados pelo brilho das verdades vistas, crendo certos que eram os únicos capazes de verem tais verdades, alguns se acharam escolhidos e privilegiados. Mas certo é que muitos outros griataram aos quatro cantos do mundo as pequeninas verdades que detinham.
Assim criou-se Deus. Na ânsia de explicar tal brilho, tal imenso impacto do encontro luminoso, detalhado, complexo e profundo com os caquinhos do Todo, os seres humanos inventaram o Divino. O divino estaria com alguns somente, aqueles que seriam por alguma razão escolhidos ou especiais, queridos ou preferidos do criador, esse mesmo criador que nada mais era que a própria criatura que criou para si a visão e a iluminação de um fragmento muito pequeno do Todo. Mas como era de se esperar, com muitos seres humanos habitando o planeta, todos iguais nas faculdades biológicas e psíquicas, não demoraria muito até que outros humanos percebessem que tinham, também, os fragmentos de espelho no interior de si mesmos e, ainda, veriam que o reflexo dos próprios cacos de espelho não eram iguais àqueles que eram amplamente divulgados e arrebatavam milhões de outros humanos que, por alguma razão muito privada, ainda não tinham percebido em si mesmos os próprios cacos de espelho. Começou-se assim a segregação, verdades eram discutidas com bases das mais honestas, ideias eram debatidas e por um breve começo os antigos erméticos viveram em um cenário de diálogo que, por razões desconhecidas, não durou muito. Alguns sábios dos tempos antigos perceberam que as verdades se multiplicavam rapidamente e que muitos, não raramente, utilizavam as próprias verdades para benefícios próprios criando, assim, o caos e semeando muito sofrimento.
Não se sabe se desde a origem haviam os propagadores do sofrimento, mas se sabe que por um dado momento na origem da multiplicação das verdades houve um diálogo, tal diálogo gerou o ímpeto de aprisionar e estruturar todo o conhecimento que se tinha em um conjunto de símbolos. Foi assim que nasceu muitos dos sistemas mágicos que o mundo conhece, mas vê fenecer dia após dia, sendo o Tarot a obra prima mais antiga e, talvez, a mais esquecida. Mas na época em que o caos das verdades se multiplicava os sábios eremitas concluíram que não haveria outro modo, senão o tempo, para fazer com que todos percebessem o que esses velhos eremitas haviam percebido. Pois que, sendo todos portadores de pedacinhos de uma mesma verdade, haveria então a urgência da união para que, em nome da verdade, todos soubessem o que é a verdade. Enquanto todos estivessem a se degladiar clamando para si a posse da verdade, não haveria verdade alguma. A verdade só passaria a existir quando todos, cansados de sangrarem uns aos outros, dessem-se as mãos e abrissem-se de coração para expor os próprios caquinhos de espelho e, assim, tentassem unir pedacinho por pedacinho e recriar o grande espelho do Todo que refletiria, para todos, a imagem mais completa possível da verdade e do Todo.
E assim termina o velho conto, meus caros tupiniquins. É apenas um velho conto que em muito foi influenciado por minhas próprias experiências e em muito é parcial com minha própria maneira de pensar. Contudo, o que eu realmente quis fazer aqui, amados, foi apenas colocar o que eu penso e deixar meu caquinho de espelho para vocês verem e analisar se é possível encaixar o pedacinho que está com vocês, ou talvez, vocês percebam que o meu pedacinho de espelho está sujinho e precisa ser limpo. Enfim, essa foi minha parte. Boas reflexões.